sexta-feira, julho 28, 2006

 

Humildade


- Por uma questão de interesse, porque se maça?
- Santo Deus! O senhor também?
- Não, não se trata dum concelho. É que gostava de ficar a saber a sua resposta.
- Não percebe? Alguém tem de fazer alguma coisa.
- E esse alguém é o senhor?
- Não, não, não eu pessoalmente. Não pode ser uma actitude pessoal nos tempos que correm.
- Não percebo porque não. Mesmo nos "tempos que correm" como o senhor lhes chama, uma pessoa ainda tem direito a uma actitude individual.
- Mas não deveria ter! Em tempos de tensão quando se trata de uma questão de vida ou de morte, uma pessoa não pode pensar nos seus próprios problemas ou preocupações insignificantes.
- Garanto-lhe que está complectamente enganado. Nesta ultima guerra durante um violento ataque aéreo, eu estava muito menos preocupado com o pensamento da morte do que com um calo que me doía no dedo minimo do pé. Na altura surpreendeu-me que fosse assim. "pensa"disse eu para mim mesmo, "que a qualquer momento, a morte pode chegar". Mas continuava consciente do meu calo... na verdade, sentia-me ofendido por ter de sofrer por causa disso, para além do medo da morte. Era porque eu podia morrer que todas as pequenas questões pessoais da minha vida adquiriam uma importancia maior. Vi uma mulher com uma perna partida, por ter sido atropelada num acidente na rua, desatar a chorar ao ver que tinha uma malha caída na meia.
- O que só mostra como as mulheres são tolas.
- Mostra como as pessoas são. Foi, talvez, essa concentração na vida pessoal que levou a raça humana a sobreviver.
(...) Deu uma gargalhada de desdém
- Ás vezes acho que é uma pena que tenha sobrevivido.
- É sabe, uma forma de humildade. E a humildade é preciosa. Lembro-me de haver um slogan exibido no vosso metropolitano durante a guerra. "Tudo depende de si". Foi elaborado, penso eu, por algum teólogo eminente... mas, na minha opinião, tratava-se de uma doutrina perogrosa e indesejável. Porque não é verdade. Nem tudo depende de, digamos, Mrs. Blank de Litle-Bank-in-the-Marsh. E se ela for levada a pensar que sim, isso não vai ser bom para o seu caracter. Enquanto ela se põe a pensar no papel que pode desempenhar nos problemas mundiais, descura promenores importantes do dia-a-dia.
- Na minha opinião o senhor é bastante antiquado nos seus pontos de vista. Vamos lá ouvir como seria o seu slogan.
- Não preciso de formular um meu. Há neste país um mais antigo que me satisfaz plenamente.
- Qual é?
- "Confia em Deus e conserva a tua pólvora seca"

Jogo Macabro, Agatha Christie

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